ANAIS
Prof. Dr. phil. Antonio Alexandre Bispo
Johannes Stamitz - Brasil
(1745-1801)
BRASIL NA MUSICOLOGIA/MUSICOLOGIA NO BRASIL
CICLO DE ESTUDOS EM MANNHEIM
Sinfonia para dois dois violinos, dois oboés, violas, duas trompas e baixo
1975
Johann Wenzel Stamitz /Jan Stamic (1717-1757), violinista, violista, executante de viola d’amore, compositor, regente e professor, nascido na Boêmia e atuante no Palatinado, um dos mais relevantes vultos da história da música na Europa do século XVIIII, considerado como fundador da Escola de Mannheim, foi objeto de estudos culturais e musicológicos desenvolvidos no Brasil desde a década de 1960.
Os estudos foram desenvolvidos na Europa a partir de 1974 no âmbito de projeto brasileiro de desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos em contextos globais e, reciprocamente, de estudos culturais de condução musicológica em cooperações internacionais possibilitado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Os estudos foram sediados no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e desenvolvidos com a colaboração de outros pesquisadores. Foram conduzidos conjuntamente com musicólogos portugueses que ali atuavam.
Significado da Escola de Mannheim
A Escola de Mannheim adquire um significado de extraordinário significado nos estudos histórico-musicais do século XVIII na Europa. Entre os compositores que são nela estudados salienta-se Johann Stamitz, assim como os seus filhos Carl Stamitz e Anton Stamitz, assim como Carl Joseph Toeschi, Christian Cannabich, Ignaz Holzbauer e Franz Xaver Richter.
A consideração da Escola de Mannheim dirige a atenção a elos e relações entre regiões européias, a processos que ultrapassam fronteiras regionais. Johann Stamitz teve a sua formação na tradição da vida musical centro-européia, centralizada na prática musical nas igrejas em região marcada por procesos recatolizadores. Estudou em Brünn com Carlo Tessarini, sendo marcado pela cultura musical de centros musicais itálicos. Alcançou cedo renome como violinista. Em 1741, pela impressão causada pela sua atuação como músico nas solenidades de matrimônio do príncipe Carl Theodor do Palatinado, foi por este nomeado em 1750 a mestre de concerto e diretor de música de câmara da Côrte de Manheim.
Neste cargo, ao lado de outros músicos, em particular de Alessandro Toeschi (ca. 1700-1758) como primeiro violino, contribuiu a que a orquestra alcançasse um nível de alta qualidade, tanto na execução instrumental, sobretudo de cordas, assim como na condução ordenada de arcos, na precisão de execução e interpretação, na unidade de conjunto orientada pelo instrumentista condutor ou dirigente, na discplina dos músicos, fazendo com que se tornasse conhecida em toda a Europa.
Como mestre, formou discípulos, entre êles os filhos de Toeschi. As suas obras, assim como aquelas daqueles por êle formados, caracterizaram-se por efeitos produzidos por constrastes dinâmicos e conduções melódicas que contribuiam à unidade de obras, constituindo as assim-chamadas „maneiras de Mannheim“. A Côrte do Palatinado tornou-se um centro musical de projeção supra-regional, com características modelares, impressionando outros músicos, entre êles Leopold Mozart (1719-1787). O fato de W. A. Mozart (17556-1791) ter visitado Mannheim e ali atuado é um testemunho desse significado.
A música na Corte-Residência de Mannheim entre ca. 1740 e ca. 1780 tem sido assim tratada com particular atenção na musicologia, uma vez que também foi de importância para os estudos referentes a Mozart, que ali esteve quatro vezes, tomando conhecimento da alta qualidade e precisão da orquestra, de de seus instrumentistas e compositores. Em 1777, ali realizou vários concertos e atuou como mentor de príncipes. A orquestra de Corte de Mannheim foi de significado para o desenvolvimento da linguagem musical e da prática sinfônica, assim como para a promoção da virtuosidade instrumental e da composição.
Em estudos referentes às características estilísticas de obras de compositores da Escola Mannheim, tem-se salientado o desenvolvimento da sinfonia nas suas quatro partes, a primeira com os seus desenvolvimentos dramáticos, a segunda, lenta e expressiva, o minueto como dança estilizada e o final. Sobretudo salientou-se o papel da dinâmica, tornando-se famosos os crescendi da orquestra de Mannheim.
Obras da Escola de Mannheim no Brasil
Nas pesquisas desenvolvidas desde meados da década de 1960 em São Paulo, foram descobertas fontes que documentam a recepção e o culto de obras da Escola de Mannheim em cidades do vale do Paraíba no século XVIII. Entre elas salienta-se uma sinfonia para dois violinos, dois oboés, violas, duas trompas e baixo de Johannes Stamitz, designado em italiano como Signor Stamitz. Essa obra pertenceu ao repertório de Manuel Gonçalves Franco, de Guaratinguetá, cidade então florescente pelo comércio do ouro no caminho entre os locais de sua extração em Minas Gerais e porto de Paratí no Atlântico. A obra teria vindo através de Portugal, mas teria sido resultado de difusão de composições de casas do comércio musical em Paris. A sua presença em cidades como Guaratinguetá surge assim como relevante para estudos de caminhos difusivos e para a história da música em Portugal.
Manuel Gonçalves Franco, cujo nome nas partes indica ter sido o seu proprietário ou copista, revela-se como uma personalidade com conhecimento de tendências contemporâneas na Europa, marcado por erudição e sólida formação musical. Surge como agente e mediador de processos difusivos, uma vez que obras de sua propriedade foram copiadas e mantiveram-se na prática musical de outras cidades da região. Com elas relaciona-se necessariamente o desenvolvimento da prática instrumental, em particular da tradição violinística que marcaria a vida musical de várias localidades. Músicos e membros de famílias de músicos que lideraram a prática musical através das décadas foram sobretudo violinistas.
A recepção e o cultivo de obras européias nessas localidades marcadas pelo caminho do ouro pressupõe a existência de condições adequados para a sua aquisição, aceitação e cultivo. Se documentam o desenvolvimento da pratica instrumental, sobretudo a tradição violinísta que marcou a região, levanta-se a questão das ocasiões para o seu cultivo. Embora seculares, anotações em cópias indicam que foram também executadas em igrejas, em determinadas ocasiões e momentos adequados, o que lembra a prática dos Concertos Espirituais na Europa. Ainda que instrumentais, sem vinculos com textos religiosos, serviam fomento da espiritualidade, da introspecção, contemplação e meditação.
A permanência dessas obras em repertórios no século XIX revela continuidades na dinâmica dos desenvolvimentos. Essas permanências não podem ser consideradas apenas superficialmente no sentido de manutenção de obras do passado. Elas dizem respeito a concepções e estados mentais e psíquicos, a situações e contextos em que se inseriram.
Stamitz no Brasil e a musicologia na Alemanha
A sinfonia de Johann Stamitz, levantada em pesquisas realizadas em cidades do vale do Paraíba, despertou extraordinário interesse em círculos musicológicos alemães. Em 1975, Heinrich Hüschen (1915-1983) ministrava uma curso sobre W. A. Mozart e sua época, nele considerando a literatura especializada, a situação dos estudos, os seus desenvolvimentos e tendências. Nas aulas, tratou de compositores e obras de Mannheim no século XVIIII, do significado de Mannheim como centro musical na historiografia, em particular também nos estudos de Mozart. Considerou o seu desenvolvimento, as suas inserções contextuais e o o seu significado. Salientou a importância de suas dimensões européias através da atuação de músicos formados em Mannheim em outros centros europeus e a importância da prática instrumental nessa Côrte do Palatinado para a música orquestral não só da época designada como clássica de Viena como também nas suas extensões e desenvolvimentos no século XIX.
O conhecimento da difusão e do cultivo de obras de compositores de Mannheim no Brasil, abriu novas perspectivas para a pesquisa, ampliando a área e os contextos a serem considerados nos estudos da Escola de Mannheim e do Pré-Classicismo em geral. Dirigiu a atenção a processos de difusão de obras de seus compositores para além do Atlântico, em regiões que eram então colonias de nações européias como o Brasil, levantando questões referentes a relações e processos, à recepção de composições, de estilos e tendências européias, de sua adaptação em outros contextos e de seus efeitos em desenvolvimentos. O conhecimento de obras de compositores de Mannheim descobertas no Brasil contribuiu neste sentido ao desenvolvimento de uma musicologia histórica para além das fronteiras geográficas da Europa, o que era escopo do projeto brasileiro.
Os manuscritos levantados eram documentos que comprovavam indubitavelmente extensões estilísticas e da prática musical da Escola de Mannheim no Brasil, o que até então tinha sido sugerido através análises musicais de composições já conhecidas da época colonial. Esses documentos abriam perspectivas agora fundamentadas documentalmente também para estudos dos impulsos que forneceram a desenvolvimentos da prática e da criação musical e de sua permanência em repertórios no século XIX. A consideração dessas fontes documentais em regiões extra-européias, exigia sobretudo abordagens e cooperações interdisciplinares.
Segundo a divisão de áreas disciplinares institucionalizada, as regiões extra-européias eram da alçada da Etnomusicologia. Já se tinha tomado consciência de que essa divisão devia ser questionada, uma vez que misturava separações de esferas geográficas com concepções e procedimentos metodológicos, se baseados em fontes documentais como na História da Música ou se partissem antes da pesquisa empírica, como na Etnomusicologia.
Significativamente, encontrava-se em andamento um projeto editorial dedicado às Culturas Musicais na América Latina no século XIX, em princípio de natureza histórica, porém conduzido no departamento de Etnomusicologia do Instituto de Musicologia de Colonia. Nos encontros que então se realizaram levantou-se a questão das relações entre a linguagem musical e a prática documentada nessas fontes históricas e aquela de expressões musicais transmitidas pela tradição. Os documentos de Mannheim promoveram assim a superação de divisões entre áreas categorizadas como eruditas e populares, o que era também um dos objetivos do projeto brasileiro.
Os estudos e diálogos assim conduzidos levaram a consultas de arquivos e bibliotecas, assim como a uma jornada de estudos em Mannheim, a primeira de uma série que se realizaria nas décadas seguintes.
Aspectos das reflexões em Mannheim
Nas jornadas em Mannheim refletiu-se se nos estudos não se deviam considerar duas vertentes - a da Boêmia e a da Itália - na formação e na irradiação da Escola de Mannheim e suas extensões Brasil . Elas dirigem a atenção a contextos geográfico-culturais e da história eclesiástica e missionária da Boêmia, do sul da Alemanha, da Baviera e do atual norte da Itália que foram marcados por processos de recatolização e que marcaram profundamente a vida cultura, a arquitetura, a música e as artes.
A atenção principal foi dirigida a Karl Philipp Theodor (1724-1799), desde 1742 conde e príncipe eleitor do Palatinado nas suas relações com o Esclarecimento e as ciências. Era também duque de Jülich-Berg, região ao norte do Reno, cuja principal cidade é Düsseldorf. A partir de 1777 tornou-se príncipe eleitor da Baviera com o título de Karl II. A atenção dirige-se ao espírito do Esclarecimento que marcou em princípio o seu govêrno, marcado por reformas, inovações e fomento da filosofia e das artes. Karl Philipp Theodor tornou-se conhecido pelo seu interesse intelectual, pela sua cultura, gosto pelas artes, pelo fomento que concedeu às ciências e pela sua tolerância. Bastaria lembrar que, em 1753, recebeu Voltaire, perseguido em outras regiões. Em 1763, fundou a Academia das Ciências de Mannheim para estudos da História e das Ciências Naturais e, em Düsseldorf, um colégio de Anatomia e Cirurgia, em 1780 a sociedade meteorológica palatina. A recepção e o cultivo de obras de Mannheim no Brasil não podem deixar de considerar o contexto amplo em que se inserem como expressões de uma época marcada pela personalidade de Karl Philipp Theodor e assim por correntes de pensamento do Iluminismo.
Desenvolvimentos precedentes
A consideração do conhecimento e da execução de obras de compositores do século XVIII o no Brasil não é recente. Foi sobretudo constantemente lembrado no contexto de estudos e realização de obras de J. Haydn e de W. Mozart no Brasil, promovidas por Sigismund von Neukomm (1778.1858). A inserção dessas obras em contexto cultural amplo foi salientada em iniciativas de Martin Braunwieser (1901-1991) na década de 30 em São Paulo. Marcos foram a execução de A Criação de Haydn em tradução ao português e o fomento da obra de Mozart em círculos espiritualistas.
Compositores da Escola de Mannheim, mencionados antes de passagem em publicações e em cursos de História da Música, passaram a receber maior atenção apenas a partir das fontes levantadas em pesquisas na década de 1960. O descobrimento dessa documentação foi um dos fatores que mais contribuiram à tomada de consciência da necessária renovação de perspectivas nos estudos históricos e culturais através do direcionamento da atenção a processos em contextos globais que marcou os trabalhos do movimento Nova Difusão (ND) e no seu Centro de Pesquisas em Musicologia.
Em cursos de História da Música promovidos pelo Centro de Pesquisas em 1970, considerou-se com particular atenção as referências do autor e viajante inglês Charles Burney (1726-1814) sobre Johann Stamitz como fundador da Escola de Manheim por ter dela feito a orquestra da mais alta qualidade na Europa, famosa pela sua precisão técnica, assim como compositor de de 69 sinfonias e vários concertos, sobretudo para violino e flauta. O texto de Burney trouxe sobretudo à consciência as dimensões européias da orquestra da residência de Mannheim, não só pela proveniência de seus músicos - Johann Wenzel Stamitz provinha da Boêmia - como pelas suas consequências que de muito ultrapassaram fronteiras e que, na sua segunda geração, levou a que músicos de Mannheim atuassem em vários outros centros musicais europeus.
Aspectos das reflexões
O século XIX foi principal foco de atenções dos estudos então desenvolvidos e que teriam continuidade em âmbito internacional. A análise de desenvolvimentos do século que foi o da Independência do Brasil exige a consideração de seus pressupostos, de processos já em andamento no qual se inseriam. Esses não foram abruptamente interrompidos e superados, dando lugar a uma nova fase, como apresentado em periodizações esquemáticas. Obras, expressões e práticas que passavam a pertencer ao passado mantiveram-se em repertórios, em conplexas interações entre tradição e inovação. Tradicionais em determinados contextos, foram muitas vezes transmitidas anonimamente, sem indicação de autor ou data de composição. Apenas a análise, a ser conduzida necessariamente em dimensões globais, pode contribuir a um reconhecimento de situações epocais e contextuais.
A existência de obras com a indicação de compositores que foram difundidas e cultivadas no Brasil representa um importante subsídio a essas análises e ao estudo de desenvolvimentos estilísticos e de prática musical. Por outro lado, continuidades, ainda que submersas sob novos desenvolvimentos, não podem ser considerada como residuais, permanências de um passado superado. Tendo sido expressões de contextos e processos, possuem uma potencialidade revitalizadora, co-determinando desenvolvimentos.
Um dos objetos dessas reflexões críticas foi o de concepções historiográficas que se exprimem em termos de antes e depois, como no caso de distinções entre o Pré-Clássico e o Pós-Clássico. Essas pensamento em compartimentos ou „gavetas“ implicava na situação paradoxal de ter-se de admitir em determinados contextos uma passagem do Pré-Clássico ao Pós-Clássico sem haver propriamente o que se poderia considerar de Clássico.
Essas distinções que perspectivam o passado anacronicamente a partir de um posicionamento posterior dificultam o reconhecimento de desenvolvimentos processuais nas suas implicações culturais, sociais e políticas. A problemática da periodização histórica e de modos de pensar segundo compartimentos referenciados pela história política teve a sua maior expressão no Festival Barroco do movimento Nova Difusão e do Departamento de Cultura do Município de São Paulo em 1970, Nele discutiram-se problemas referentes a categorizações como aqueles do pré-clássico e do clássico, assim como do uso indiferenciado da expressão música barroca e música colonial.
Desenvolvimentos subsequentes
Em 1976, os estudos contextuais realizados em Mannheim tiveram sequência em Kassel por ocasião dos Dias da Música que ali se realizavem e que foram então marcados por debates sobre a necessidade de estudos mais diferenciados do século XIX na pesquisa.
A presença de obras da Escola de Mannheim no Brasil foi estudada em várias outras ocasiões. Foi discutida em colóquio de professores e doutorandos no Instituto de Musicologia de Colonia e em defesa de tese de doutoramento em 1979.
Foi tratada com o musicólogos que se destacaram na pesquisa do século XVIII em encontros e congressos. Dirigiram a atenção ao significado do estudo da recepção musical no Brasil, tema condutor do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em 1981, no âmbito do qual se fundou a Sociedade Brasileira de Musicologia.
Desde a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) no Ano Europeu da Música, em 1985, os estudos ampliaram-se a outras regiões marcadas pelos portugueses. Os estudos foram considerados em encontros do projeto Music in Life of Man do ICM e forneceram subsídios para reflexões sobre processos de transplantação da Europa á America Latina, tema discutido em encontro regional paralelo ao I Congresso Brasileiro de Musicologia em 1987.
A obra foi tratada no ciclo dedicado à História da Música em contextos globais na Universidade de Colonia realizadoi de 1997 a 2000, assim como em cursos no Seminário de Musicologia da Universidade de Bonn em 2003.
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